Deixei o Luso, em 1975, na companhia dos meus pais e irmãs.
Tinha eu, portanto, 9 anos de idade.
Talvez por terem sido aqueles os anos mais felizes da minha vida, continuo a fazer questão de guardar, no mais profundo do meu ser, imagens, aromas e muitas outras recordações dos momentos que lá vivi.
Recuso-me a deixá-los para trás.
O Luso foi elevado à categoria de cidade.
Era uma terra agradável, com um bom hotel, hospital, maternidade, cinema, aeroporto, lojas e serviços diversos, rádio clube, uma papelaria acolhedora, parque público, liceu, escola técnica onde eram ministrados diversos cursos de cariz técnico-profissional, centro desportivo "Ferrovia", enfim, tinha todos os requisitos para uma vida simpática no interior do território angolano.
Muitas são as recordações que trouxe comigo. Recordo-me das famosas flores do Moxico, do nosso pomar (ficava nas traseiras da nossa casa) cujas árvores estavam permanentemente decoradas de fruta, do aroma inconfundível das goiabas e dos maracujás, das papaias e dos mamões, do ananás, das mangas e dos "manguitos" do senhor Branco. As viagens que fazíamos de carro, em família, eram obrigatoriamente interrompidas. Seria uma pena se deixássemos escapar a oportunidade de adquirir outro género de fruta igualmente deliciosa. À beira da estrada, deambulavam as quitandeiras com cestas que transportavam fruta variada, para venda. Maboques, loengos, grandes cachos de banana-macaco. Recordo-me das matunduas, das pitangas e da fruta da borracha que tantas vezes pude saborear.
Relembro, com saudade, os amigos e colegas de escola com quem brinquei, sempre como irmãos e sem distinção de raça ou cor, a bata branca que usávamos diariamente, as brincadeiras no recreio, as orações que fazíamos, em conjunto, ao fim do dia, antes de abadonarmos a sala de aula. Cantávamos o hino nacional. Todos os dias. Era um ritual a que nos habituámos desde os primeiros dias de escola.
Sinto saudades do "mata-bicho" (pequeno-almoço) que a nossa mãe nos preparava pela manhã, das papas com que nos deliciávamos ao lache, feitas com farinha de trigo torrada ou de milho, sempre salpicadas de canela; Dos abacates que preparávamos com muito açucar e sumo de laranja, dos sumos de tomate natural que sempre detestei mas que era obrigada a beber.
Lembro-me daquele cheiro magnífico a terra molhada e da trovoada que, por vezes, fazia; Das noites em que fugi para a cama dos meus pais com medo daquelas faíscas tão fortes. E, por falar em medo... é sabido que há crianças que fazem tudo o que os pais pedem sempre que estes se referem ao "homem-do-saco" ou ao "lobo-mau". Eu confesso que, em relação a mim, a frase que melhor funcionava era: "Vem aí o chingange". Aliás, a maior parte das vezes nem era necessário ouvir a frase. Tenho ideia de estar a brincar no jardim e de ouvir, ao longe, o som dos instrumentos que tocavam (batuque, quissange e marimba). Era o suficiente para que eu fugisse para casa a-sete-pés. Tenho que acrescentar que os nativos que executavam estas danças eram absolutamente inofensivos. O seu aspecto é que não cativava uma criança pequena. De todo.
Recordo-me das bitacaias e dos morros de salalé (formiga branca); Do sol, a extinguir-se no horizonte.
Como um espectro metálico, arredondado e sóbrio, uma enorme lua de platina espelhava-se nas águas muito lisas do rio Luena, num prodígio inexplicável de reflexos sobrenaturais. Não vi nada mais belo no mundo do que aquela grande lua, precisamente naquele minuto soberbo em que começava a desdobrar a sua luz quase baça de fantasma imaculado sobre a esteira caprichosa dos meandros daquele rio manso onde abundavam as "tuqueias" (peixinhos do tamanho de sardinhas muito gordas que, depois de secas, eram consideradas um petisco de alta qualidade).
A contrastar com este aglomerado populacional e bem próximo desta cidade bela e em progresso, era frequente encontrarmos pequenas povoações, pertencentes praticamente a uma única família e quase sempre rodeadas de uma paliçada de troncos de 3 ou 4 metros de altura, que servia de defesa contra leões e outras feras - os "quimbos".
As "sanzalas" eram de maiores dimensões. Traduziam uma pequena aldeia que podia comportar até 2000 pessoas. Em regra, os nativos que habitavam as sanzalas, partilhavam a mesma capela, a mesma enfermaria e a mesma escola. Habitualmente, havia uma "cubata" de tamanho maior. Era a residência do "soba" (autoridade administrativa subordinada ao chefe do Posto a que pertencia). Em redor, um conjunto de outras cubatas e palhotas mais baixas. Talvez fosse o reduzido tamanho destas "casinhas" que as tornava tão íntimas e acolhedoras. Uma peça que existia em todos os quimbos era o "jango" (casa-de-estar). Não é mais do que uma palhota redonda, geralmente sem paredes e com tecto cónico, apoiado em estacas.
O povo "Luena" era caracterizado por mulheres altas, elegantes, que se moviam com gestos graciosos de animais livres. Embora não usassem ornamentos especiais, nem por isso deixavam de ter uma coqueteria discreta e um encanto feminino deveras acentuado. Além disso, eram duma limpeza irrepreensível, dando sempre a ideia de terem acabado de sair de um dos banhos que, com frequência, tomavam nos rios.
Os homens eram robustos, bem constituídos, irradiando simpatia e com uma vivacidade agradável.
Vejo-me obrigada a fazer aqui um parêntesis. Esta descrição da mulher luena traz-me à memória a Elisa. A nossa segunda mãe. Para que possam ter uma ideia da imensidão do amor e da gratidão que sempre fizemos questão de manifestar-lhe, posso dizer-vos que a Elisa sempre foi tratada por mim e pelas minhas irmãs como "mãe-preta", para a distinguirmos da nossa mãe, a quem chamávamos "mãe-branca". Esta senhora foi para junto de nós quando as minhas irmãs gémeas nasceram. O meu pai trabalhava no Palácio, como motorista do Governador do Luso. Passava muito tempo ausente, em viagem. A minha mãe tomava conta de uma mercearia que possuia. Viu-se forçada a procurar ajuda. Contratou a Elisa para tomar conta de nós. Passou a ser, também ela, a nossa mãe.
A extensão do território angolano justificava que, entre grandes cidades, se pudessem percorrer milhares de quilómetros, de carro, por estradas magníficas, boas, sofríveis, más, péssimas e caóticas.
A extensão do território angolano justificava que, entre grandes cidades, se pudessem percorrer milhares de quilómetros, de carro, por estradas magníficas, boas, sofríveis, más, péssimas e caóticas.
As "picadas", por exemplo, mais não eram que uma forma embrionária duma futura estrada. Caminhos em terra batida.
No decurso destas viagens era habitual localizarem-se: "anharas" - planícies com características semi-desérticas que definiam a estepe e cobertas de "capim" (erva); "chanas ou tchanas" - zonas planas que não são mais que leitos de rios não perenes com o fundo coberto de capim; e "mato", muito mato. Era possível andar algum tempo num mato próximo, ao cair da tarde.
Do chão atapetado de fetos era habitual levantar-se uma humidade quente. Não se ouvia uma voz, um ruído de motor, o apito de uma locomotiva. Nada que viesse lembrar que a humanidade também existe. Era uma quietude essencial. Um concerto de silêncio executado pelo esvoaçar de aves grandes recolhendo aos poleiros, pelo fugir de algum animal pequeno roçando nas plantas rasteiras, pelo piar triste dum pássaro triste que vinha de ramo em ramo e nos seguia.
A natureza mostrava-se cansada: Nós maravilhosamente sozinhos. Poucas coisas no mundo trazem uma sensação mais completa de liberdade total do que aqueles momentos do grande mato em que se começava a ouvir o respirar das árvores. Era habitual encontrar caça grossa abundante e variada e grandes extensões de mato queimado - As queimadas. As cinzas eram recolhidas e posteriormente espalhadas pelos locais de cultivo. Tinham como finalidade corrigir a acidez dos solos.
Estas surpresas contrastantes encontravam-se a todo o momento - arrastando até nós aqueles impactes inesquecíveis que nos orgulhavam e nos arrepiavam, ou aqueles deliciosos momentos de emoção de que nem vale a pena falar: e tudo, no seu conjunto, convertia-se na fascinação magnética daquela realidade admirável e desconcertante que era ANGOLA.
Minha querida,
ResponderExcluirTambém vim de Angola com 9 anos, em 75. Precisamente do Luso. As memórias que guardo não são tão vastas como as suas. Mas lembro-me dos Correios, do cinema, da Escola Primária nº 53, onde fiz o 1º Ciclo, da Escola onde a minha mãe era professora (conhecida como Dra. Eufêmia), do Lar da Mocidade Portuguesa Feminina e de Benguela, onde passávamos as férias de Verão.
Obrigada por me ajudar a recordar. Melhor seria se fossemos amigas, coleguinhas de escola (ou de famílias conhecidas).
Um abraço do tamanho do mundo!
Que bom trazer à memória,algumas coisas que o tempo teima em apagar!Vim do Luso com 13 anos, mas confesso que já não me lembro de muito, principalmente nomes de pessoas!Lembro-me perfeitamente da escola nº 53, onde fiz a 1ª e 2ªclasse, depois passei para o sindicato para fazer a 3ª e 4ªclasse,onde tive como professora a Mª da Costa. Andei na escola Gonçalves Crespo e no 3ºano do liceu(atual 7ºano)frequentei o liceu Marcelo Caetano.Disto lembro-mo na perfeição.Claro que me lembro da minha casa e tudo o que ficava ali perto, como a casa Minita por exemplo;também me lembro do cinema,dos correios, do jardim principal, do rio Luena...lembro-me de todas as frutas(os maboques é do que sinto mais saudades) que falou...infelizmente os rostos das pessoas e os nomes...não sou capaz de associar!Obrigada pela partilha, que nos leva numa viajem pelo tempo.Um abraço
ResponderExcluirManuela Cunha
Ola,chamo-me satelites mais conhecido por titito,morava ao lado da mese dos fusileiros,perto dos correios,estudei na 53,sindicato e,por na Gonçalves Crespo.Na verdade o Luso era um oasis naquel cantinho,voltei a pisar aquela terra em 1976 e o meu coração e mente simplismente ficaram bloquiados de tanta angustia,inte.
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