2 de fevereiro de 2011

Palavras que poderiam ser minhas

Brincar à Justiça.
É normal que os cidadãos queiram saber o rumo da vida da comunidade. Tentar entrar nos mecanismos da Justiça faz parte dessa legítima curiosidade.
Há ainda a natural inquirição sobre o "estado da Justiça". Tudo isto é um conjunto de interesses atendíveis, e geralmente protegidos. Outra coisa é a intoxicação da "opinião pública" e a tentativa de usar os cidadãos, a sua massa, ou grupos determinados, para pressionar a Justiça nas suas várias instâncias, do julgamento ao recurso.
No lamentável caso recentemente ocorrido em Nova Iorque, em torno de uma morte aparentemente violenta, e sendo certo que só a Polícia e o responsável pela segurança do hotel viram o corpo, nas primeiras horas, criaram-se logo enredos de "factos", circunstâncias e "descrições" que não foram mais do que especulação e romance negro, muitas vezes com intenções determinadas de desculpa e ataque.
O mesmo para os recentes incidentes em torno da "verdade" de um réu condenado em primeira instância, no caso dito "Casa Pia". Os acusados foram longamente ouvidos por magistrados de instrução, juristas de formação, antes do julgamento. Não em segredo, numa cela húmida e escura, sob a ameaça de tortura de verdugos boçais, mas com garantias (há quem chegue a dizê-las excessivas), e na presença de múltiplos advogados. Houve acareações, todo o tipo de requerimentos, e possibilidades inúmeras de contraditório, impugnação, contestação, contra-interrogatório, desmontagem de falsidades, argumentos falaciosos ou armadilhas.
Qualquer causídico que ouvisse um depoente - testemunha, arrependido ou réu - vir dizer, depois deste enredo processual paquidérmico, tão custoso para o erário público (e para a paciência de todos), que afinal inventou, mentiu ou foi forçado a mentir, devia sentir-se ofendido e insultado, ou agir com frieza e distância. Não se compreende o entusiasmo e o elogio, incompreensível mesmo numa sociedade que fosse tribal e primária.
E há lugares, num Estado de direito, para julgar a mentira da verdade, ou a verdade da mentira, que tenham relevância criminal. São os tribunais. Não as televisões, não os sofás das discotecas, nem no velho largo do pelourinho, dos velhos julgamentos populares.
Convém, por outro lado, não brincar com coisas sérias. Numa sociedade decente, a Justiça devia ser uma delas.
Nuno Rogeiro|Jornal de Notícias|28.01.2011

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