7 de janeiro de 2010

Maria Bethânia - Poema do Menino Jesus

Um poeta brilhante e... uma voz de sonho.


Poema do Menino Jesus
Maria Bethânia

Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho
como uma fotografia, eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez
menino, a correr e a rolar-se pela erva
A arrancar flores para deitar fora,
e a rir de modo a ouvir-se de longe.
Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra
fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.
Um dia que Deus estava dormindo e o Espírito Santo
andava a voar, Ele foi até à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que Ele tinha fugido;
com o segundo Ele se criou eternamente humano e menino;
e com o terceiro Ele criou um Cristo eternamente na cruz
e deixou-o pregado na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo.
É uma criança bonita, de riso natural.
Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças d'água,
colhe as flores, gosta delas, esquece.
Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,
e foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha graça,
Ele corre atrás das raparigas que levam as bilhas à cabeça e levanta-lhes a saia.
A mim, Ele ensinou-me tudo.
Ele ensinou-me a olhar para as coisas.
Ele aponta-me todas as cores que há
nas flores e mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois
com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer nós brincamos às cinco pedrinhas no degrau da porta de casa.
Graves, como convém a um deus e a um poeta.
Como se cada pedra fosse todo o Universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão.
Depois conto-lhe histórias das coisas só dos homens.
E Ele sorri, porque tudo é incrível.
Ele ri dos reis e dos que não são reis.
E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Depois Ele adormece e eu levo-o ao colo para dentro da
minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o
lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo
materno até Ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma.
Às vezes Ele acorda de noite, brinca com meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,
sorrindo para os meus sonhos.
Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais
pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua
casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e
humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu
tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu
brincar. (Fernando Pessoa - Texto adaptado)

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